A percepção de que se aprende com as mãos é moeda corrente nas corporações de ofício europeias, de origem medieval. Para os Compagnons du Devoir (França), “o conhecimento mora na cabeça, mas entra pelas mãos”. Ou seja, “a inteligência da mão existe” (J. Berger). Segundo os compagnons, o homem teria duas inteligências, uma especulativa e outra prática, por isso tem uma cabeça e duas mãos. Para eles, lógica se aprende resolvendo problemas de torneiras ou encaixes.
Ruminações de serralheiros e carapinas? Nem tanto, pois o filósofo grego Anaxágoras afirmou: “Por ter mãos, o homem é o mais inteligente dos animais”. Ou, se queremos artilharia pesada, que tal Kant, para quem a “mão é a janela da mente”? O papel do lado prático da escola aparece em Montessori e outros, ganhando força na escola de Rudolf Steiner. Infelizmente, a escola foi atropelada pelo peso do academicismo, ficando meio artificial. Foi monopolizada por gente voltada para a “inteligência especulativa”. O uso das mãos sumiu da escola. Com a miragem do “knowledge worker”, ter-se-ia tornado um apêndice subalterno, cuja única função é apertar teclas.
Mas eis que o assunto desperta, com novas roupagens e escoltado pela melhor ciência neurofisiológica. Charles Bell fala da “mão inteligente”. De fato, descobriu-se que a mão se comunica com o cérebro por múltiplos circuitos neuronais, enleando-se promiscuamente com os da inteligência. Ou seja, foi mapeado um acesso privilegiado da mão ao pensamento. Alguns pesquisadores afirmam que, dispondo de um instrumento tão sofisticado e sensível, a mão do homem fez o cérebro evoluir. Aceitemos, pois, como séria a teoria de que aprendemos com as mãos.
Duvidam? Mostre-se a uma pessoa um canivete, de todos os ângulos, com todos os detalhes. Aparentemente, tudo foi visto. Mas, inevitavelmente, virá o pedido: “Deixa eu ver” – levando à cuidadosa manipulação do objeto. Se os olhos já haviam visto tudo, faltava às mãos enxergar.
Diante disso, por que deixa de ser usado na escola esse grande livro-texto que são as mãos?
Aprendemos ao segurar, medir, pesar e desmontar. Aprendemos quando usamos ferramentas, quando resolvemos os mil problemas de construir alguma coisa ou de consertar um aparelho. Não creio que deslindar sujeitos e predicados em Os Lusíadas seja mais educativo do que deduzir logicamente por que a lâmpada não acende. Pesquisar um circuito elétrico, com diagramas e aparelhos de testes, é analiticamente tão denso quanto muito do que se pretende fazer na escola. Além disso, obriga aos múltiplos saltos entre a abstração do circuito no papel e os componentes do circuito de verdade. É assim que se aprende teoria, pendulando entre ela e a prática, num vaivém permanente.
Perry Wilson, um estudante americano, tinha dificuldades medonhas em Matemática. Tropeçou sucessivamente ao longo do curso, acabando vencido no início do seu curso superior. Frustrado, foi aprender carpintaria, para fazer casas. Como as casas daquele país são feitas pelo próprio carpinteiro, incluindo muito trabalho com plantas e cálculos, logo descobriu que a mesma Matemática que o havia maltratado era agora óbvia e fácil. Impressionado com a descoberta, criou um programa chamado “If I had a hammer”, no qual os alunos participantes constroem uma cabana de madeira no pátio da escola. Mas como acontece com as casas de verdade, antes de serrar e pregar há muita planta e muita conta para fazer, além de outros conhecimentos requeridos. Surpresa! Em poucos dias, observa-se um substancial aumento nas notas de Matemática dos alunos participantes.
Cabe uma advertência, pois não se trata de exumar a disciplina de “Trabalhos Manuais”, já desmoralizada pelo seu título rasteiro e pouco casando pensamento e ação. No tempo limitado da escola, é preciso escolher atividades em que haja uma interação feliz e fértil entre a mão e a cabeça. Recortar figuras de revistas é manual, mas intelectualmente pobre. Demonstrar um teorema é um exercício mental demasiado distante do mundo das coisas. Mas o Teorema de Pitágoras pode ser aprendido na rua. Por exemplo, como traçar no solo um ângulo reto, dispondo apenas de um pedaço de barbante?
A abstração é a culminância do desenvolvimento intelectual do homem. Mas a capacidade de operar na estratosfera das teorias não vem pronta de fábrica. De fato, o aprendizado de teorias rarefeitas arrisca-se a virar pura decoreba se não começar vendo, pegando e medindo. O tal “knowledge worker”, tão de moda, precisa ser educado no concreto e no real, depois é que vem o descolamento progressivo do sensorial.
As atividades escolares deveriam ser escolhidas de forma a criar o máximo de oportunidades de usar as mãos para aprender. Como, de uma forma ou de outra, tais atividades vêm sendo feitas por incontáveis anos, não se trata de inventar, mas de recuperar o melhor que já apareceu.
O que era uma percepção intuitiva de alguns hoje percebemos ser ciência respeitável, demonstrando que a mão é inteligente e, portanto, é utilíssima no aprendizado, tanto do prático como do teórico. Por que a nossa escola insiste em refugiar-se nas brumas de um intelecto que ignora a riqueza intelectual das mãos?
Claudio de Moura Castro, economista e especialista em Educação, para O Estado de S.Paulo