As crianças precisam viver uma infância completa, em um ritmo adequado, com brinquedos que desenvolvam a imaginação e pais participativos e sensíveis. É o que prega Catherine L’Ecuyer, autora do livro “Educar na curiosidade”. Na obra, Catherine fala sobre a importância de simplificarmos a infância e como o excesso de estímulos durante essa fase pode ter um impacto negativo na idade adulta. Confira a entrevista concedida ao site português Observador:
No livro você diz que algumas crianças recebem tantos estímulos (televisão, tablet, smartphone…) que chegam a ficar apáticas. Essa é uma realidade recorrente?
Acredito que seja uma tendência. A criança já nasce curiosa, com o desejo de conhecer as coisas e com uma capacidade de se maravilhar com uma quantidade mínima de estímulos, portanto não é preciso estimulá-la em excesso. Quando damos muitos estímulos à criança, ela passa a depender de uma fonte externa e deixa de querer conhecer o mundo por si própria.
As novas gerações são as mais afetadas?
Quando eu era criança as coisas eram mais lentas. Agora, o ambiente é mais frenético, há mais estresse, consumismo e tecnologia. Além disso, os dois pais trabalham e têm menos tempo. Mas depende do ambiente em que a criança vive. Há famílias que têm um ambiente com menos estímulos, mais tranquilo e que respeita o ritmo da criança. Cada caso é um caso. O livro adverte para uma situação geral, mas cada família deve ver o que pode fazer para reduzir o ritmo e filtrar o estresse. Se os pais não filtram o estresse, a criança acaba vivendo como um pequeno executivo estressado.
Quais os riscos que uma criança sofre ao ser exposta em excesso a esses estímulos?
Primeiramente, a perda da curiosidade, que leva à dificuldade na aprendizagem. A curiosidade é o desejo de conhecer e, quando uma criança perde esse desejo, nada mais tem graça. A criança já viu tudo, já fez tudo, nada a surpreende e nada desperta o interesse. Quando adiantamos etapas fazemos com que a criança faça e veja tudo antes do tempo e, muitas vezes, ela não está preparada para assimilar essa informação. Para se desenvolver normalmente, a criança precisa ter seu ritmo respeitado. Quando damos à criança ritmos muito rápidos ela fica saturada de informação e a consequência é a impulsividade. Maria Montessori chamava isso de “grito da natureza”, que é quando uma criança reclama sobre algo que a sua natureza reclama. Às vezes, esses gritos são entendidos pelos pais como má educação, capricho ou rebeldia. O trabalho dos pais consiste em discernir o que é capricho e o que é grito da natureza. É preciso conhecer a criança e as circunstâncias, bem como acreditar no instinto maternal e paternal. Cada pai deve tentar perceber o que a criança precisa e porque está se queixando.
Nesse sentido, qual é a importância do vínculo afetivo entre a criança e seu cuidador?
É fundamental. Na psicologia, uma das teorias mais aceitas e sobre a qual se baseiam muitos programas educativos é a teoria do apego. A teoria diz que as crianças precisam criar uma vínculo de confiança com o seu principal cuidador para se sentirem seguras e terem autoestima elevada. As crianças ficam com a autoestima elevada porque se sentem queridas pelos pais e se sentem seguras porque aprendem a confiar nas pessoas. As crianças com apego seguro descobrem mais, são mais curiosas, são mais esperançosas e vão mais longe para descobrir. Aquelas com apego inseguro são mais retraídas, têm medo de ir mais longe e desconfiam muito – e isso tem impacto nas relações futuras. O vínculo de apego se estabelece nos dois primeiros anos e nos acompanha durante toda a vida. Mas como se estabelece esse vínculo? Usando nossa sensibilidade para entender as necessidades da criança.
Você acredita que as crianças estão crescendo rápido demais ao serem expostas a coisas que não correspondem à idade delas?
Sim. Chamo isso de “redução da infância”. A consequência dessa redução é o alargamento da adolescência. A infância deve ser vivida no tempo certo e, caso isso não aconteça, as pessoas terão de vivê-la depois e faltará maturidade na fase adulta. Cada vez mais as crianças se comportam como pequenos adultos e os adultos se comportam como crianças. A infância é a idade dos jogos, da imaginação, uma idade em que se aprende muito. É muito importante vivê-la no momento certo.
No livro você diz que a brincadeira é a mais velha cultura do mundo. O que acontece com uma criança que não brinca o suficiente?
A criança que não brinca é a criança passiva, que está à espera que o brinquedo aja. Mas não é o brinquedo que tem de agir, é a criança que tem de fazê-lo por meio do brinquedo. Os brinquedos com menos pilhas e botões são melhores. Há dois tipos de brinquedos: os que permitem que a criança seja protagonista, aja, brinque e proporcionam seu desenvolvimento; e os que fornecem conteúdos rápidos e não respeitam o ritmo interior da criança. Esses últimos são nocivos e geram o excesso de estímulos e a perda da curiosidade já citados.
Os pais têm noção do perigo desses brinquedos nocivos?
Acho que tudo o que os pais fazem é pensando que é bom para seus filhos. É muito importante que tomemos as decisões do que entra no nosso espaço porque não podemos abdicar do nosso papel como primeiro educador. Ou seja, temos que decidir quais brinquedos devem ou não entrar em casa. Para ter a informação do que convém e do que não convém, é preciso saber o que dizem os estudos. É por isso que no livro utilizo muitas referências a estudos acadêmicos de neuropediatria, porque penso que são dados relevantes que ajudam os pais a tomarem essas decisões.
Você sente que os pais andam muito indecisos e inseguros?
Acho que existem muitos livros no mercado sobre conselhos — o que se deve fazer e o que não se deve fazer para que uma criança seja inteligente, para que coma, obedeça e durma. Acho que a indústria dos conselhos empacotados fez muitos danos à educação porque acabou com o instinto maternal e paternal e menosprezou a sensibilidade que o pai tem de saber o que seu filho precisa. Quem sabe o que fazer quando uma criança chora não é um autor que não conhece os filhos, somos nós. Temos de nos conectar outra vez com essa sensibilidade e, para isso, temos de passar tempo com nossos filhos.
Por que os pais têm recorrido tanto a essa indústria dos conselhos?
Acho que essa indústria começou por três motivos. O primeiro é porque os pais têm menos tempo para estar com os seus filhos e é junto dos filhos que vão encontrar as respostas certas, ao observá-los e estando com eles. O segundo motivo é porque estamos em um mundo cada vez mais complicado, mais rápido e mais acelerado. Há muitos agentes que interferem na educação, que não controlamos e que deveríamos controlar. O terceiro motivo é porque nos deixamos enganar e acabamos por acreditar em uma série de coisas que não estão corretas, que são os “neuromitos”. Os “neuromitos” são interpretações mal feitas da literatura da neurociência. Um “neuromito” é achar que as crianças só utilizam 10% do seu cérebro ou que têm uma inteligência limitada e que é preciso estimulá-las. Outro? Durante os três primeiros anos é preciso manter a criança em um ambiente enriquecido, caso contrário ela não se vai desenvolver. Nada disso é verdade. São interpretações mal feitas da neurociência aplicada no âmbito educativo. A indústria do conselho empacotado geralmente começa com esses “neuromitos”. Se eu disser “o seu filho tem um potencial ilimitado e tem três anos para aprender inglês, chinês e mandarim, violoncelo e ballet”, então vamos pensar que é preciso que ele faça tudo isso rápido, que é preciso adiantar as etapas. Resultado? Os pais ficam estressados. É preciso simplificar a infância e a paternidade. Não existem pais perfeitos, existem pessoas que gostam muito dos seus filhos e que têm um instinto e uma sensibilidade para perceber o que eles precisam.
Por que você diz em seu livro que os pais estão cada vez mais “entertainers”?
Porque os pais não conseguem competir com um tablet ou com uma televisão e, para tentar competir, começam a organizar atividades e passam todos os fins de semana fazendo todos os passeios possíveis. Eles viram meros entertainers. Brincar, que é ativo, não é o mesmo que entreter, que é passivo. Na brincadeira, a motivação é interna e a criança atua a partir de dentro. Na diversão, a motivação é externa e não gera curiosidade. No primeiro caso a criança presta atenção, no segundo está desatenta.
Acha que as crianças são menos felizes agora do que eram no passado?
Não sei se podemos afirmar isso. Uma criança é filha do seu tempo, ela não sabe distinguir o antes do agora. O que temos de perguntar é se, além de sermos filhos do nosso tempo, somos escravos do nosso tempo. Se não somos, então temos de rejeitar tudo aquilo que não respeita a natureza das crianças, as etapas da infância, a necessidade de silêncio, o mistério e a beleza. Acho que também é importante não cair na nostalgia de pensar que antes era melhor e que agora é tudo um desastre. É possível ser curioso em 2017, como sempre foi e sempre será.
No livro você fala dos educadores mecanicistas, aqueles que querem crianças “à la carte”. O que isso significa?
Um educador mecanicista é uma pessoa que pensa que a criança pode ser à la carte, que é como uma folha em branco sobre a qual escrevemos o que queremos. Crianças assim são cubos vazios, programadas por nós como se fossem uma aplicação informática. Sabemos que não é assim que deve ser porque as crianças têm o desejo de se conhecer internamente e de se mover sozinhas.
Ainda criamos crianças à la carte?
Penso que essa realidade sempre existiu, mas não podemos generalizar e dizer que todos fazem isso. É preciso ver caso a caso. No livro denuncio essa tendência. O estilo de educação mecanicista de educar consiste em três pontos: memorização mecânica, repetição mecânica e autoridade como a única fonte de conhecimento — “é assim porque eu digo que sim”. É um estilo educativo que não responde à verdade das pessoas.
Como é que se educa uma criança sem interferir em sua curiosidade?
Não se pode aprender no caos, portanto é preciso que existam regras. Defendo que a criança deve descobrir o mundo no seu ritmo, mas isso não é incompatível com regras. O importante é que a criança deseje aprender e não que faça o que quer. É muito importante ter um ambiente preparado porque o mundo real tem limites.