Há quase duas décadas, a Finlândia é famosa internacionalmente por ter um dos melhores sistemas educacionais do mundo. Seus estudantes de 15 anos ficam geralmente nos primeiros lugares dos rankings do Pisa, teste internacional que avalia conhecimentos em leitura, matemática e ciências (na edição mais recente, o Brasil amargou a 66ª posição em matemática, por exemplo, de um total de 72 países avaliados).
A habilidade da Finlândia em produzir resultados acadêmicos impressionantes é fascinante para muitos, já que as crianças do país só começam a frequentar a educação formal aos sete anos. Além disso, eles têm jornadas mais curtas, férias mais longas, poucos deveres de casa e não fazem provas.
Mas, apesar desse sucesso, a Finlândia está reformando seu sistema, algo que o país considera vital em uma era digital na qual as crianças não dependem mais apenas dos livros e das aulas para adquirir conhecimento. Em agosto de 2016, tornou-se obrigatório para todas as escolas finlandesas ensinar de maneira mais colaborativa. Agora, permite-se que os alunos escolham um tema que seja relevante para eles – e suas matérias serão baseadas nessa escolha.
Uma das chaves da mudança foi fazer um uso inovador da tecnologia e de fontes de conhecimento fora da escola, como especialistas e museus. O objetivo dessa forma de ensinar (conhecida em inglês como “project or phenomenon-based learning” ou “aprendizagem baseada em projetos/fenômenos”) é oferecer às crianças as habilidades que elas precisam para se desenvolver no século 21.
“Tradicionalmente, o ensino é definido com uma lista de matérias e informações que uma pessoa deve adquirir, por exemplo, matemática e gramática. Mas, na vida real, nosso cérebro não está dividido em disciplinas, nós pensamos de uma maneira muito holística. E quando você pensa nos problemas do mundo atual (crise global, imigração, economia, era da pós-verdade), realmente percebemos que não demos às nossas crianças as ferramentas para lidar com esse universo intercultural. Acho que é um grande erro fazer as crianças acreditarem que o mundo é simples e que, se aprenderem certas informações, estarão prontas para encará-lo”, analisa Kirsti Lonka, professora de psicologia educativa na Universidade de Helsinque.
Entre as habilidades necessárias, segundo Kirsti, estão o pensamento crítico para identificar notícias falsas e evitar “cyberbullying” (ataques ofensivos pela internet) e a capacidade técnica de instalar software antivírus e conectar o computador a uma impressora. “Aprender a pensar e a entender, essas são as habilidades que importam”, diz.
A Escola Hauho
A repórter Penny Spiller, da BBC, conheceu de perto uma das escolas finlandesas e relata o que viu por lá:
Em um dia gelado, em uma região remota no sul da Finlândia, os pensamentos dos alunos de 12 anos na sala estão em um lugar distante: na Roma Antiga. O professor está mostrando uma reconstrução em vídeo – projetada sobre a lousa inteligente e interativa – do dia em que a erupção do monte Vesúvio destruiu a cidade de Pompeia. Os estudantes formam grupos e começam a usar seus minilaptops.
A tarefa dada a eles é comparar a Roma Antiga à Finlândia moderna. Um grupo analisa os banheiros romanos e os spas de luxo de hoje; outro compara o Coliseu aos estádios esportivos atuais. Eles usam impressoras 3D para criar uma versão em miniatura dos edifícios da época, que logo serão parte de um jogo que envolverá toda a classe.
“Trata-se de uma aula de história diferente”, conta o professor Aleksis Stenholm, que trabalha na Escola Hauho, de Ensino Médio. Nela, os alunos também estão aprendendo habilidades tecnológicas, de investigação, comunicação e compreensão cultural. “Cada grupo está virando especialista no seu tema, que logo será apresentado ao resto da sala”, explica. O jogo marca o fim do projeto, que é realizado em conjunto com aulas normais.
A Escola Hauho está em uma região de bosques e lagos a 40 minutos de carro da cidade de Hameenlinna. Com apenas 230 alunos de idade entre 7 e 15 anos, tem um ambiente acolhedor.
Os estudantes deixam seus sapatos na entrada. Em algumas salas, em vez de cadeiras, usam bolas de Pilates. Há barras nas portas para fazer flexão de braço. Os professores não se importam com o uso de celular na aula. Consideram bom que as crianças o valorizem como ferramenta de pesquisa, e não só para se comunicarem com os amigos.
Nesse dia frio, os alunos mais velhos se colam a seus smartphones na hora do almoço, enquanto alguns dos mais novos se amontoam lá fora, na neve, esperando para usar a pista de skate, os campos de futebol ou a quadra de basquete. O diretor, Pekka Paappanen, é um forte defensor do sistema de ensino baseado em projetos e busca de várias maneiras integrá-lo oficialmente ao currículo escolar.
“Discutimos ideias com os professores e depois eu garanto o tempo e o espaço necessários para que elas as desenvolvam. Acredito que isso dá mais poder aos professores, mas eles precisam se dar conta de que não podem fazer tudo. Estamos deixando para trás algumas velhas tradições, mas fazemos isso de forma lenta. O trabalho de ensinar nossas crianças é muito importante e não podemos cometer erros”, conta.
Um dos maiores projetos do ano passado foi sobre o tema da imigração, abordado em um momento em que o fluxo de pessoas entrando na Europa ocupava todas as capas de jornais de todo o mundo. O tema foi escolhido ao perceberem que muitos alunos tinham pouca experiência pessoal com imigrantes ou com a imigração. O tema foi incorporado, por exemplo, às aulas de alemão e de religião. Os alunos de 15 anos tiveram de fazer pesquisas de opinião com moradores locais sobre a imigração e visitaram um centro de refugiados para entrevistá-los. Eles compartilharam suas descobertas por meio de uma conferência em vídeo com uma escola na Alemanha, que desenvolveu um projeto similar.
“A reação dos alunos foi algo muito forte. Eles começaram a pensar e a questionar suas próprias opiniões. Se eu sozinho tivesse ensinado sobre o tema, usando duas ou três aulas, por exemplo, o efeito teria sido muito diferente”, lembra Stenholm.
Apesar das ideias inovadoras, o conceito da “aprendizagem baseada em projetos” tem seus críticos. Alguns, como o professor de física Jussi Tanhuanppa, temem que esse método não aprofunde suficientemente o conhecimento sobre cada tema e que isso dificulte sua jornada rumo à universidade. Ele dá aulas em Lieto, nos arredores da cidade de Turku. Conta que, de um grupo de jovens que aprendia matemática em nível avançado após os 16 anos, 30% precisaram voltar ao nível anterior. Tanhuanppa também teme que isso acentue a diferença entre alunos mais e menos capazes – uma diferença que, historicamente, é bastante pequena na Finlândia.
“Essa forma de ensinar é genial para as crianças mais ‘brilhantes’, que entendem quais conhecimentos devem ser levados de um experimento. Dá a elas liberdade de aprender no seu próprio ritmo e de tomar o próximo passo quando estão prontas. Mas não é a mesma coisa para os alunos que têm menos capacidade de entender e que precisam de mais assistência. A diferença entre os mais brilhantes e os menos capazes já começou a aumentar. E eu tenho medo que isso só piore”, argumenta.
Outros críticos dizem que isso pode aumentar a carga de trabalho dos professores e colocar os mais velhos, dotados de menos conhecimentos digitais, em desvantagem em relação aos mais novos. Jari Salminen, da Faculdade de Educação da Universidade de Helsinque, afirma que métodos de ensino similares foram testados no passado, mas fracassaram. “Muitas pessoas de fora me perguntam: ‘por que vocês estão mudando o sistema, se ainda conseguem os melhores resultados? E para mim é um mistério, porque não temos nenhuma informação vinda dos colégios de que o método baseado em projetos esteja melhorando os resultados”.
Anneli Rautiainen, da Agência Nacional para a Educação da Finlândia, admite que há preocupações a serem levadas em consideração e afirma que mudanças estão sendo introduzidas de maneira gradual. Por enquanto, de acordo com as novas regras, as escolas só precisam incorporar um projeto por ano para seus alunos. “Queremos encorajar os professores a ensinar assim e os alunos a aprenderem, mas estamos começando devagar. Ainda se ensinam matérias e existem metas para cada uma delas, mas também queremos que sejam introduzidas as habilidades nesse tipo de aprendizagem”, destaca.
Mas quais são os resultados? “Não somos muito amantes das estatísticas neste país, em termos gerais, então não estamos planejando medir o sucesso disso, ao menos por enquanto. Esperamos que possamos perceber isso nos resultados de aprendizagem das nossas crianças e nas avaliações internacionais, como o Pisa”, diz Rautiainen.
Ainda que nem todos estejam convencidos dessa revolução do ensino finlandês, a maioria dos alunos e pais de Hauho a vê como positiva.
Sara, de 14 anos, disse que as aulas “não cansam tanto e que são muito mais interessantes”. Ana, também de 14 anos, conta que sua irmã mais velha tem inveja dela porque “a escola é muito mais divertida agora do que era na sua época”. A mãe Kaisa Kepsu garante que a maioria dos pais que conhece vê com bons olhos as mudanças feitas no currículo. “Houve uma discussão mais ampla sobre a necessidade de garantir que as crianças ainda estejam aprendendo as informações mais básicas e eu concordo com isso. Mas também é importante motivá-los mais e fazer que o mundo seja mais interessante. Não vejo mal nenhum em tornar a escola mais divertida”, conclui.
Com informações do G1