O curioso trajeto da faquinha ‘sloyd’
Marca passo a educação que não incorpora as mãos no processo de aprender.
Comprei no AliExpress uma simpática faquinha, chamada de “sloyd” pelo fabricante. Como haveria chegado a uma cutelaria chinesa essa palavra com ar escandinavo? Ao desvendar o mistério, veremos que mãos e cérebro estão mais próximos do que pareceria.
Durante os longos invernos escandinavos, ficar dentro de casa era uma opção inevitável (como o isolamento dos dias de hoje). Numa sociedade ainda pobre e rodeada de florestas, por que não construir objetos úteis de madeira? Porém, no século 19, produzir vodca em casa revelou-se uma alternativa mais atraente. O problema é que a produção levou a uma bebedeira generalizada e ao desaparecimento desse artesanato.
Diante do problema, o governo resolveu usar suas escolas básicas para ensinar aos jovens as artes que se haviam perdido nas labutas com os alambiques. Era preciso relançar produtos para o mercado. Mas, com o tempo e boas cabeças cuidando do assunto, chegou-se à conclusão de que construir objetos de madeira tinha forte impacto no desenvolvimento da personalidade e da cognição. Abandonou-se então a índole comercial e tais atividades foram estruturadas, passando a ser incorporadas ao currículo escolar, apenas por seus fortes méritos educativos. O movimento foi chamado de Sloyd, o nome das faquinhas usadas pelos alunos nos seus trabalhos.
Diante do grande sucesso em toda a Escandinávia, os suecos criaram cursos visando a preparar professores de Sloyd para o mundo inteiro. Ao início do século 20, alguns brasileiros frequentaram tais programas.
E assim veio para o Brasil a disciplina de Trabalhos Manuais. Porém, dada a nossa cultura avessa a usar as mãos, os verdadeiros objetivos educacionais foram se perdendo. Sobrou uma caricatura, com poucas e toscas ferramentas sendo usadas sem quaisquer consequências educativas. Quando foi aposentada, lá pelos anos 1970, já não servia para nada.
Mas acontece que há mais substância nessa ideia do que se podia perceber nas nossas desmoralizadas atividades escolares. O movimento Sloyd teve enorme impacto nas escolas americanas. De fato, até hoje todas as escolas têm oficinas e professores competentes apoiando os alunos. Não é descabido pensar que isso tenha contribuído para fazer daquele país o campeão mundial das patentes.
Com o tempo, houve uma bifurcação dentro das escolas americanas. Os alunos de maior status convergiram para as disciplinas acadêmicas, mais abstratas, ficando as oficinas para os mais modestos. Como resultado, as atividades manuais passaram a ser vistas com desdém. Ser obrigado a matricular-se nelas era uma punição para o fracasso nas áreas acadêmicas.
Todavia esses acidentes de percurso não fazem senão esconder o papel das mãos na educação. O homem deixa de ser um primata como os outros na medida em que evolui a funcionalidade de suas mãos, exigindo cada vez mais da sua inteligência em usos mais ambiciosos. Um cérebro cada vez maior é a resposta aos desafios de criar objetos úteis, enfim, tecnologia. Do ponto de vista fisiológico, isso significa que as áreas do cérebro encarregadas de missões complexas e criativas desenvolveram conexões íntimas com as mãos. O que se aprende usando as mãos cala mais fundo.
Filósofos gregos perceberam que mãos e inteligência operam em contato estreito. Corporações de ofício de origem medieval têm como moto “o conhecimento mora na cabeça, mas entra pelas mãos”. Ou seja, marca passo a educação que não incorpora as mãos no processo de aprender. As escolas Waldorf têm isso muito claro.
Alvíssaras! Entra em cena o movimento Stem, de Science, Technology, Engineering and Mathematics. Podemos ver nele uma versão atualizada das ideias do Sloyd. Lidando com tecnologia e com problemas de engenharia, desenham-se conexões com os princípios científicos e com as ferramentas matemáticas correspondentes. Se ficasse aí, seria uma boa maneira de contextualizar ciência e matemática. Mas a genialidade da ideia é que isso tudo acontece dentro de projetos realizados pelos próprios alunos. Ou seja, volta o protagonismo das mãos para o primeiro plano. E os ganhos educacionais não podem ser subestimados. Deixa de entender o que está perdendo quem não sentiu o imenso prazer de criar com as mãos algum objeto. Aliás, essa emoção leva a um aprendizado mais profundo.
E não para aí, abre-se mais uma porta. Na última década aparecem nos Estados Unidos os Maker’s Spaces. São oficinas, simples ou sofisticadas, oferecendo a quem quiser a oportunidade de ir lá e construir o que lhe der na telha. Pode ser um carrinho de rolimã ou um robô controlado por Arduino.
Isso acaba chegando ao Brasil, pois nossa fome de novidades é invencível. Esparramam-se os Maker’s Spaces por aí. O potencial é enorme.
Mas os vícios culturais que esmagaram o nosso Sloyd não desapareceram. Poucos entenderam que as mãos oferecem uma passagem secreta para o conhecimento. Um dia, ao sairmos dessa maldita covid, poderemos pensar seriamente em educação. Seria a chance de usar as mãos para turbinar o nosso ensino?
*Originalmente publicado por Claudio de Moura Castro, O Estado de S.Paulo | 1º de maio de 2021 | 23h55